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Fidelidade e traição entre cães e seres humanos - Página 11

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[continuação]

Por seus animais de estimação, aqueles que financeiramente podiam pagavam multas, matrícu-las e faziam longas caminhadas para reaver seus cães das “garras” da prefeitura. Quando Flox não conseguia se safar da “carrocinha” era levado, com outros cães, para um depósito municipal localizado na Ponte Pequena, nas proximidades do Clube de Regatas Tietê. Quando não havia, na linha de bondes, o “caradura”, o veículo dos operários que também permitia animais domésticos, não restava outra opção a não ser levar o cão, pela coleira, do depósito municipal

até o local de residência, no caso a Alameda Santos. “Chegávamos em casa exaustas, mas por seus cães mamãe enfrentava tudo, modificava até sua maneira de ser – normalmente cordial e cerimoniosa”. Porém, em uma cidade em ritmo acelerado de transformação, contingências da modernidade muitas vezes extrapolavam os limites da própria condição humana.
“– Moça – era um homem avisando –, seu cachorro foi atropelado...
Saímos todos correndo. Lá estava Flox estendido no meio da rua, ensanguentado, morto. Um carro passara sobre sua cabeça quando procurava fugir dos laçadores da carrocinha de cachorro. (...)

Em torno, juntavam-se curiosos. Alguns paravam rapidamente, olhavam e seguiam seu caminho, na maior indiferença, nada demais havia acontecido... Eu chorava, consumida de tristeza, quando ouvi o comentário de um homem apressado: ‘... não foi nada, não! É um vira-lata que morreu atropelado’...”

Para a construção da São Paulo moderna, vidas efêmeras e frágeis como a de Flox mostravam- se inconciliáveis, indesejáveis. Ironias da história, o pai de Zélia Gattai era dono de uma oficina mecânica. Paradoxos da modernidade. Depois de Flox, a família Gattai deparou-se com a seguinte situação: “O animalzinho [uma cadelinha de raça maltesa] fora encontrada vagando pelas ruas, sem rumo certo, uma orelha enorme inflamada, contrastando com seu corpo pequeno. A ferida aberta purgava. Dado seu tamanho, a princípio pensamos tratar- se de um filhote. Como de hábito, mamãe se encheu de pena e a recolheu: “Gente sem coração, abandonar na rua um bicho nesse estado!...” Cadelinha linda, de pelos lisos e sedosos, bege quase rosa, parecia de brinquedo. Depois de examinar bem a ferida, dona Angelina deliberou: “Vou salvar essa pobrezinha”.

Do Paleolítico Superior aos sofisticados pet shops da atualidade, cada época, cada região, cada povo e cada sistema sociocultural e políticoeconômico tem estabelecido com o cão distintas relações. De animal sagrado nos templos do deus egípcio Anúbis às criações muitas vezes clandestinas e em massa da atualidade, o homem tem usado os cães para os mais diversos objetivos. Alguns repletos de sensibilidade e troca efetiva entre espécies, outros, a maioria, marcados por abuso, maustratos, exploração, escravização. Mas é importante ter sempre claro que, na maior parte dessa longa história, as relações de humanos e cães não se estabelecerem essencialmente pela fórmula maniqueísta do bem contra o mal.

Fonte: www2.uol.com.br/sciam/reportagens/fidelidade_e_traicao_entre_caes_e_seres_humanos.html

Nelson Aprobato Filho é doutor em história pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo com a tese O couro e o aço. Sob a mira do moderno: a “aventura” dos animais pelos “jardins” da Pauliceia, final do século XIX / início do XX, defendida em 2007. Autor do livro Kaleidosfone
– As novas camadas sonoras da cidade de São Paulo, fins do século XIX – início do XX publicado pela Edusp/ Fapesp em 2008, trabalho originalmente defendido como dissertação de mestrado. Atualmente é teaching assistant e program assistant do Department of Romance
Languages and Literatures da Harvard University, EUA.
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