Skip to main content

Fidelidade e traição entre cães e seres humanos - Página 9

Página 9 de 12

[continuação]

cidade_sao_pauloCaptura Diária dos “Vagabundos”
Nova alteração na vida dos cães ocorreria quatro anos mais tarde. O prefeito-historiador Washington Luiz continuaria, como seus antecessores, “preocupado” com a enorme quantidade de cães soltos. Como nenhum outro, ele queria transformar São Paulo em símbolo máximo de progresso, cultura, ciência e tecnologia. Nesse sentido, para resolver o incômodo causado pelos cães, promulgou uma longa e detalhada lei, a de número 1.882, de 9 de junho de 1915, que regulamentava a “apreensão de animais perigosos ou não, encontrados errantes nas vias públicas e atacados de raiva”. Essa apreensão seria diária, e os cães encontrados, levados ao Depósito Municipal, onde ficariam pelo prazo máximo de quatro dias. A novidade oficializada pelo futuro presidente do Brasil ficou reservada ao breve Artigo 5o, quase oculto em meio a tantas normas e obrigações, e que dizia respeito à pequena parcela de animais “poupados” do “sacrifício”: “Findo, sem reclamação alguma, o prazo estabelecido no artigo anterior, os animais serão sacrificados ou cedidos a estabelecimentos científicos para pesquisas”. Curiosamente, nessas leis, foi utilizada a palavra de conotação religiosa “sacrifício”.

Com isso estava instituído, de forma oficial, o fornecimento regular de cobaias vivas para os laboratórios e institutos de pesquisa que se instalavam na cidade. Essa prática já existia pelo menos desde 1895, mas não institucionalizada e abastecida diretamente pela prefeitura. Nesse ano, o presidente da Câmara, Pedro Vicente de Azevedo, promulgou uma lei que proibia os “abusos e maus-tratos” a animais em geral. O artigo 6o dizia: “Aos animais destinados às experiências científicas de vivissecção e outras, serão aplicados anestésicos e mais meios apropriados em ordem e minorar-lhes, quanto possível, os sofrimentos”. Não esclarece, no entanto, de onde vinham esses animais, nem a que instituições científicas eram destinados. Mas, é importante lembrar, que exatamente no ano de 1895 a UIPA havia sido fundada. Ainda em 1895 surgiria a primeira associação de médicos, a Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo.

Nesse período o Museu Paulista, conhecido como Museu de História Natural, iniciava suas atividades, voltadas quaseexclusivamente à zoologia. O primeiro diretor foi o médico e zoólogo Hermann von Ihering. Em 1893 havia sido implantada a Escola Politécnica de São Paulo que, entre outros cursos, ofereceria o de engenharia agronômica, com várias disciplinas relacionadas à criação animal. Em 1892, o Laboratório de Bacteriologia do Estado de São Paulo também começava a funcionar.

Em 1915 Washington Luiz regulamentaria de fato a prática. As estatísticas do período são estarrecedoras. No Relatório do Prefeito do ano anterior consta que foram recolhidos das ruas da capital 1.097 animais de espécies variadas, 513 veículos e 1.251 volumes. A população de cães era tão grande que, nessas estatísticas, era citada separadamente. Em 1914, sob a regência de Washington Luis, foram apreendidos 5.643 cães, dos quais apenas 842 foram retirados por seus donos, após o pagamento de matrículas e multas, sendo os restantes, 4.801, “sacrificados”. Três anos depois, nas tabelas de 1917, o número aumentou para 7.427 cães, 6.880 “sacrificados”, 190 retirados, 42 mantidos em depósito e 315 enviados para estudos. A lei também não identificava as instituições de pesquisa científica e ensino a que se referia. Outro dado que não deve ser esquecido é que essas quantidades representam apenas o número oficial anunciado pelas estatísticas governamentais. “Servir” à ciência” teria sido uma forma de “dignificar” os cães “vagabundos” ou essa foi apenas uma justificativa para amenizar um problema que havia anos onerava os cofres públicos, desafiava prefeitos, vereadores e fiscais e, principalmente, maculava o esplendor e progresso da “cidade do futuro”?

Para ter apenas uma ideia aproximada da “eficiência” e dos objetivos do novo prefeito, em três anos, 1916-18, foram apreendidos 25.811 cães, e nada menos que 22.563 deles foram mortos e outros 535 utilizados em “pesquisas”. Essa verdadeira campanha de guerra da prefeitura contra os cães da cidade desenvolveu-se, com algumas alterações de métodos e eficácia, mas não de objetivos, por todo o século 20. Foi só muito recentemente, em 2008, pela lei estadual 12.916, de 16 de abril, que uma nova e positiva possibilidade foi oficialmente lançada. Essa lei estipula o controle da reprodução de cães e gatos assim como o fim do extermínio realizado pelos centros de zoonoses.

Fonte: www2.uol.com.br/sciam/reportagens/fidelidade_e_traicao_entre_caes_e_seres_humanos.html

Nelson Aprobato Filho é doutor em história pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo com a tese O couro e o aço. Sob a mira do moderno: a “aventura” dos animais pelos “jardins” da Pauliceia, final do século XIX / início do XX, defendida em 2007. Autor do livro Kaleidosfone
– As novas camadas sonoras da cidade de São Paulo, fins do século XIX – início do XX publicado pela Edusp/ Fapesp em 2008, trabalho originalmente defendido como dissertação de mestrado. Atualmente é teaching assistant e program assistant do Department of Romance
Languages and Literatures da Harvard University, EUA.
  • Criado por .
  • Acessos 57791