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Fidelidade e traição entre cães e seres humanos - Página 10

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[continuação]

nao_matem_meu_cachorroAo longo de todo esse tempo, de forma espontânea e quase paralelamente às medidas governamentais, parte da população encontrou meios para dar uma chance de vida a esses animais. Essas pessoas não deixavam de representar uma espécie eficaz de “resistência” aos projetos modernizantes e autoritários de “limpeza” da cidade. Zélia Gattai, em seu livro, Anarquistas, graças a Deus, relata a certa altura que “pelo nosso enorme portão, aberto de par em par, entravam, procurando guarida, cães abandonados ou escorraçados por moleques da rua. Penalizada, mamãe recolhia e tratava quantos aparecessem por lá.” Ela se refere à história de Flox que “apareceu um dia, fugindo das pedradas de um bando de meninos. Machucado, atingido numa das patas traseiras, sangrando, corria com dificuldade, sustentado por três pernas apenas. Encontrou o providencial portão aberto, entrou, escondeu- se debaixo de um automóvel estacionado na garagem. Morta de pena, como sempre, mamãe o acolheu; conquistou a confiança do animal assustado, oferecendo-lhe água fresca, falando-lhe com carinho. (...) Tratado com todo o carinho, adotado, Flox tornou-se o nosso melhor e mais fiel amigo; em nossa companhia, viveu cerca de oito anos, eficiente guardião das crianças, sempre atento a defendê-las se fosse preciso. Seu único e grande defeito era gostar de rua”.

Os Homens da Carrocinha
Como Flox, muitos outros cães também gostavam de rua. Como Zélia Gattai e sua mãe, muitos outros moradores da São Paulo de 1910 também tinham verdadeiro asco da “carrocinha de cães”. “Eu detestava os ‘homens da carrocinha’. (...) Quando os via acuando um cão – dois e três homens, armados de laços, contra pobre e indefeso animal – sentia ódio dos covardes. Muitas vezes agarravame ao bichinho, sem jamais tê-lo visto antes, para evitar que fosse laçado.

Uma vez, enquanto os laçadores, distraídos no afã de alcançar sua presa correndo em disparada, distanciaram-se deixando a carrocinha repleta e desprotegida, Tito, um amigo e eu aproveitamos a ocasião para, num abrir e fechar de olhos, abrir a porta da jaula, soltando os cães, que nos acompanharam em desabalada carreira. Temendo ser perseguida, olhei para trás e divisei um cãozinho, todo aparvalhado, sem saber que rumo tomar, onde meter- se. Voltei rapidamente e agarrei-o a tempo de impedir que fosse laçado novamente pelos homens encolerizados. Esbravejando, eles avançavam em minha direção, dispostos a arrebatar-me o animal:
– Este cachorro é meu! – gritei, chorando, o animalzinho apertado contra o peito. – Ninguém leva o meu cachorro!
As pessoas paradas em torno da disputa tomavam minha defesa, não escondendo sua animosidade contra os “inimigos”, que não tiveram outra alternativa senão desistir. Eu já era sua conhecida de aventuras passadas e por isso me detestavam. Se pudessem me laçavam também, como aos cães.”

Fonte: www2.uol.com.br/sciam/reportagens/fidelidade_e_traicao_entre_caes_e_seres_humanos.html

Nelson Aprobato Filho é doutor em história pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo com a tese O couro e o aço. Sob a mira do moderno: a “aventura” dos animais pelos “jardins” da Pauliceia, final do século XIX / início do XX, defendida em 2007. Autor do livro Kaleidosfone
– As novas camadas sonoras da cidade de São Paulo, fins do século XIX – início do XX publicado pela Edusp/ Fapesp em 2008, trabalho originalmente defendido como dissertação de mestrado. Atualmente é teaching assistant e program assistant do Department of Romance
Languages and Literatures da Harvard University, EUA.
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