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Eu! Eu! Eu! O Veganismo que não é sobre os animais

Gustavo Guadagnini

Quando alguém pergunta o que é veganismo a resposta costuma ser “um estilo de vida no qual se busca eliminar na medida do possível e praticável uso de produtos com origem animal…”, conforme disse a Vegan Society. Porém se a gente quiser uma visão um pouco mais prática, pra que serve esse movimento? Em última instância veganismo deveria ser sabe salvar o maior número de animais possível e acabar com a exploração animal.

Em teoria ninguém discorda dessa frase, porém se a gente for olhar as interações da comunidade vegana, uma coisa salta aos olhos: quase todas as discussões são focadas na pessoa e não nos animais. Metade das brigas dentro da comunidade são a respeito de quem é vegano de verdade e quem não é, se você está autorizado a fazer isso ou aquilo, se pode interagir com tal marca ou apoiar aquela pessoa. Qualquer um que já tenha passado pelas comunidades do facebook leu posts sobre os malvados “bem estaristas” e encontrou gente perguntando “tal coisa é liberado?”, “posso comprar de tal marca?”.

Quem se interessa por outros tópicos ainda pode ter tido contato com assuntos como: “um verdadeiro budista precisa ser vegano”, “impossível ser minimalista sem ser vegano”, “espírita que não é vegano não é espírita de verdade”, “vegano que apoia o capitalismo nem deveria estar vivo”. O mesmo padrão de conversas pode ser visto em quase todos os sites especializados que se dedicam a falar sobre o veganismo, eles usam boa parte de seu espaço com matérias acusatórias, rixas dentro do movimento e, principalmente, julgando que atitudes são veganas de verdade.

Por fim, a mesma pauta domina quase todos os eventos veganos. Sobram comida, roupas e cosméticos especializados. Chovem discussões sobre veganismo e Yoga, como montar um prato, como crescer seus músculos.  Ao mesmo tempo, é quase impossível encontrar um debate que gire em torno do tema “o que salvaria mais animais?”.

O veganismo se tornou um movimento altamente antropocêntrico. Frequentemente deixou de ser sobre salvar o maior número de animais e passou a ser sobre alcançar um nível maior de perfeição humana, sobre ganhar um selo de ser humano superior, que segue todas as regras e vive de forma impecável.

Um caso clássico pra gente pensar a respeito: João estava em viagem para um lugar paradisíaco, porém com pouco estrutura. Ele rapidamente percebeu que seria difícil encontrar comida vegana de qualidade e foi se virando com salada enquanto pode. Porém num dos passeios mais longos, só havia uma estância turística para comer durante o dia inteiro e nada de vegano no cardápio. João então comeu um sanduíche que não era vegano. De volta para a civilização, João retoma sua dieta. Agora a dúvida: João é vegano? Ele pode se declarar dessa forma, pode pregar sobre o movimento, pode usar esse termo?

Essa discussão e suas variações aparecem com frequência nas comunidades de facebook. Como vocês devem lembrar, na maior parte das vezes o que acontece é uma enxurrada de ódio e críticas, dizendo que João não pode se chamar de vegano e que veganos de verdade teriam seguido sem comer nessa situação.

Agora, de um ponto de vista estritamente sobre o que salva mais animais, vejam duas situações:

  1. João é acolhido na comunidade vegana, segue falando sobre o tema e levando o veganismo para mais pessoas. Ele e a comunidade se organizam para pressionar o lugar em questão para que tenha opções veganas e para que ninguém mais precise passar por isso nesse local.
  2. João ouve a comunidade, para de se considerar vegano e de falar a respeito, afinal ele não tem moral suficiente. Ao invés de pressionar a estância turística, a comunidade apenas critica a pessoa e nada muda.

Qual situação salvou mais animais?

A verdade é que, do ponto de vista estritamente dos animais, a opção A seria muito mais eficiente e proveitosa. Da mesma forma, dezenas de outras discussões tomariam rumos diferentes se fossem analisadas sob o olhar dos animais:

  • O que é melhor: boicotar uma empresa tendo pouquíssimo impacto em sua demanda ou ensiná-la a parar de usar animais nas formulações?
  • O que gera mais impacto: campanha contra a Impossible Foods porque a marca seguiu os protocolos do FDA e testou um ingrediente em animais ou campanha contra o FDA para que pare de requerer testes assim a todas as marcas?
  • O que ajuda mais a acabar com testes no setor cosmético: boicotar a linha de produtos cruelty-free de uma marca que vende na China, ou apoiar essa linha para que a marca comprove a demanda por esses produtos e nunca mais lance algo testado em animais?

Não tem nada de errado com os veganos que querem discutir sobre si mesmos, fazer yoga e comer brigadeiro, porém está na hora de o movimento como um todo também dar espaço para discussões maduras sobre o que pode de fato salvar mais vidas animais.

Um viés macabro do discurso de “essa marca é liberada?” está exatamente na pergunta “liberada por quem?”. A ideia de que um vegano é alguém que precisa seguir certo conjunto de regras cria espaço para que pessoas assumam o papel de criar essas regras. Um movimento de pessoas que pensam por si e decidem suas ações com base na própria realidade e na própria visão do que é impactante não cria uma multidão de seguidores fanáticos e não é bom para quem está assumindo essas posições de liderança.

Qualquer pessoa a começar uma discussão sobre eficiência (ex: qualquer uma das três perguntas que fiz acima) seria prontamente banida das comunidades de facebook e ridicularizada pela maioria dos sites especializados em listas de produtos “liberados”. Por que os controladores dessas comunidades e desses sites tem tanto medo de que o veganismo se torne um movimento com massa crítica, mais pautado no pensamento individual do que nas regras que eles impõe?

O conceito do veganismo nasceu em 1944, num contexto histórico e social completamente diferente do que vemos hoje. O mercado não era o mesmo, a exploração não acontecia da mesma forma e muito menos na mesma escala. De lá para cá o consumo per capita de produtos com origem animal vem crescendo (ou seja, a demanda aumenta por crescimento do consumo individual, não só pelo crescimento da população). Sendo assim, nada mais natural do que ter menos regras e mais debates, certo? Vamos seguir com a mesma cartilha de 1944 e esperar que faça efeito hoje em dia, ou vamos adaptar as estratégias para a realidade atual?

A ideia aqui não é trazer novas regras, mas quebrar as antigas e dar espaço para um discussão mais madura. Sem regras e sem resposta certa, deixo aqui algumas provocações:

Pequenas atitudes podem importar menos do que os impactos de longo prazo. Não interessa o que alguém comeu hoje, ou ontem ou num dia específico de uma viagem única. Importam os hábitos diários associados ao consumo de produtos com origem animal, que são 99% do consumo dessa pessoa.

Nem sempre o problema se resolve com luta. Existe um caminho em que a gente dialoga com as empresas ou invés de só boicotá-las. Implementar pequenas mudanças (como a Segunda sem Carne, por exemplo) pode ter grande impacto na diminuição da demanda total por produtos com origem animal (e, portanto, salvar diretamente muitos animais).

A moral da pessoas envolvidas pode importar menos do que o poder de resolver uma situação. A discussão mais relevante não é se a gente tem que boicotar a Impossible Foods, mas quem a gente tem que pressionar para que testem não aconteçam mais no setor de alimentos.

Facilitar a entrada aumenta o número de pessoas engajadas. O veganismo não terá efeito enquanto seguir valendo para 1% da população. Pode ser melhor acolher mais pessoas em diferentes estágios de adesão (ex: flexitarianos, reducitarianos, ovolactovegetarianos) para ter essas pessoas “do nosso lado” e reduzindo gradualmente seu consumo do que excluí-las e deixar que voltem a consumir mais produtos com origem animal.

Você pode ou não concordar com os tópicos acima, esse é exatamente meu ponto. Nós só vamos avançar com o movimento vegano quando houver espaço para debate, mensuração de resultados e crescimento. Quando a gente deixar de ser um grupo de fanáticos que seguem regras criadas pelo administrador da comunidade do face e começar a ser um grupo de estrategistas agindo de diversas formas para chegar num objetivo comum.

Encerro focando exatamente numa palavra: diversidade. O veganismo ganha se tiver pessoas que discordam e se respeitam, fazendo diferentes formas de ativismo. Alguém pode lutar para implementar a Segunda Sem Carne nas escolas enquanto outro grupo luta para educar pessoas sobre nutrição vegetariana e outro grupo faz uma campanha na frente da hamburgueria para mostrar imagens chocantes de animais explorados.

Eu não sei se as estratégias que sigo pessoalmente vão realmente se provar as mais eficientes, por isso mesmo tenho certeza de que a existência de várias frentes de trabalho aumenta nossa chance, nosso alcance e salva mais animais. O veganismo existe há 74 anos, mas o consumo total de animais mundialmente só aumentou ano a ano, então talvez seja hora de focar menos nas regras e mais nas estratégias para expandir a atuação do movimento e aumentar nossa capacidade de salvar animais.

OBS: Esse artigo foi inspirado pela leitura do texto Vegans vs. animals: “Me me me me me me me.”, de Matt Ball. O título é uma referência à inspiração, mimese autorizada pelo autor.

 

Fonte: www.veganismoestrategico.com.br

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