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O ativismo é de mercado, também

Guilherme Carvalho

Uma defesa do ativismo vegano de mercado e um desabafo pelo fim da intolerância ideológica intramovimento

Parte 1: Os pacotes de crenças

O movimento vegano tem entre seus membros diferentes orientações políticas, culturais, econômicas, religiosas e sociológicas. Para não correr o risco de criar um clube restrito em que todos pensem da mesma forma (algo que está no interesse oposto ao dos animais), é justo e razoável esperar que, dentro do veganismo, haverá pessoas ateias, umbandistas e evangélicas; capitalistas, socialistas e anarquistas; de direita, de centro e de esquerda.

De uns tempos para cá, porém, tem surgido uma vertente, embora de expressividade limitada, que defende que determinadas combinações de crenças são incoerentes e inconciliáveis. “Vegana de direita”, por exemplo, é uma combinação considerada inconcebível para alguns. Pois “o veganismo é uma causa de esquerda por natureza”, dirão.

Isso é o que eu chamo de “kit de crenças”: um pacote imposto como forma de ver o mundo – não apenas no que diz respeito aos direitos dos animais ou vegetarianismo/veganismo em si, mas em relação a formas mais abrangentes de ver o mundo – em diversos aspectos. E, se você não concorda com o pacote, dirão que é porque você é privilegiada, alienada, ou simplesmente “não entendeu o veganismo de verdade”.

Isso é uma crítica a quem é vegano de esquerda? É claro que não. Você pode ser vegano de esquerda ou vegano de direita; vegano ateu ou vegano evangélico – contanto que tenha respeito e a tolerância aos diferentes modos de pensar dentro do veganismo.

Vale ressaltar que a imensa maioria das ideologias socioeconômicas jamais contemplaram os animais. O mundo já viu demonstrações da implementação de vários sistemas políticos e ideológicos e, em nenhum deles, a preocupação com os animais foi levada a sério.

Se o motor da matança é o consumo de carnes e derivados, todos fazem parte. Queremos que qualquer pessoa – negra, branca, LGBT, da periferia, conservadora, eleitora da extrema esquerda, eleitora da extrema direita, pobre ou rica – considere o veganismo igualmente. Não seria isso que os animais esperariam de nós? O máximo de pessoas deixando de demandar morte e sofrimento nas granjas e matadouros, independentemente das suas demais crenças?

Se cada ativista ou organização usar sua vocação da melhor forma que pode – uns falando com a esquerda, outros com a direita; uns com a igreja, outros com os políticos; uns com as empresas, outros com o povo – conseguiremos levar o veganismo mais longe e beneficiar mais animais.

 

Parte 2: Veganismo apolítico?

Acusar a impertinente imposição do “kit de crenças” não é o mesmo que dizer que o veganismo não é político. É óbvio que o veganismo é político – pois, na sua essência, trata de direitos dos animais. Portanto, uma luta por justiça social; uma luta política. Mas não decorre disso que possamos arrogantemente determinar o que é coerente com essa luta e o que não é. As pessoas, mesmo veganas, têm diferentes visões sobre a sociedade e sobre as formas de se alcançar justiça e bem-estar em outras esferas.

Existe ainda uma outra “apontação de dedo” que vem tentando rotular uma parte dos ativistas veganos como não-politizados e alienados: a ausência do argumento de direitos animais no discurso. Dizem que apolítico e inadequado também é aquele ativismo vegano que fala de mercado, fala de produtos, fala de acesso, mas não fala sobre os animais – que são as grandes vítimas e a razão de existência do próprio veganismo.

.Aqui cabe uma referência histórica. No começo do século 19, o ativista abolicionista inglês William Wilberforce recorreu a uma inusitada estratégia de mercado (restringir quais nacionalidades de navios poderiam circular em águas britânicas) para conseguir reduzir significativamente a importação de escravos negros na Grã-Bretanha, avançando assim na causa abolicionista. Dizer que o ativismo de Wilberforce foi apolítico seria, no mínimo, desmerecer a história.



Foi não falando sobre as vítimas, e sim sobre outras motivações, que o ativista abolicionista inglês do séc. 19 William Wilberforce conseguiu um grande avanço para a causa antiescravagista

A questão é que, para ajudar as vítimas de uma opressão, nós não precisamos ficar o tempo inteiro falando sobre elas. Diálogos aprofundados sobre direitos e ética animal são essenciais, mas no seu lugar e momento. Às vezes, é não falando sobre os animais – ainda que sejam a nossa razão de acordar todos os dias para lutar – que conseguimos os melhores resultados para eles. A teoria psicológica do “pé na porta” (Foot-In-The-Door), verificada em diversos experimentos comportamentais desde os anos 60, mostra que as pessoas são mais abertas a uma determinada ideia após terem concordado com um pedido menor. A campanha Segunda Sem Carne encontra exemplos práticos disso o tempo todo: mesmo quem começa a participar motivado por saúde ou simplesmente porque agora encontra mais opções no mercado, após aderir, também passa a se interessar pela causa animal.

 

Parte 3: Os animais em segundo plano, novamente?

Por tempo demais, os animais ficaram em segundo ou terceiro plano, ofuscados e negligenciados diante dos embates dos seres humanos: guerras, disputas políticas, impasses econômicos, debates sociológicos. Enquanto isso, os números de matança e exploração cresceram exponencialmente, chegando, hoje, a mais de 120 mil animais mortos por minuto para produzir carnes, laticínios e ovos.

Temos a oportunidade de colocar os animais de volta na frente da fila – e começar já a atuar para reduzir esses números, que sabemos que escondem a maior dor do mundo.

Trabalhar para melhorar a realidade dos animais dentro do sistema sócio-político-econômico vigente (que inclui as corporações como grandes atores poderosos da sociedade) não significa concordar com esse sistema; significa colocar os animais em primeiro plano.

Se as corporações tomam decisões importantes para os animais, trabalhamos com elas. Se os governos tomam decisões importantes para os animais, trabalhamos com eles. Se outros atores tomarem decisões importantes para os animais, trabalharemos com eles também. E sim, fazemos tudo isso sem exigir que esses atores sejam perfeitamente coerentes. A situação é trágica e urgente demais para dar-se ao luxo de agir de outro modo. É uma questão de foco nos animais.

 

Parte 4: Ativismo vegano de mercado

O “ativismo vegano de mercado”, aqui entendido como o conjunto de estratégias e ações de ativistas e organizações vegetarianas/veganas que se propõem a difundir o veganismo e avançar na causa dos direitos dos animais utilizando abordagens ligadas a mercado e acesso, é um exemplo de como conseguimos trazer grandes resultados para os animais, colocando-os em primeiro lugar (sem achar que precisamos mudar o sistema de organização da sociedade inteira para poder ajudar os animais), e sem necessariamente citá-los no discurso.

O aumento de oferta de produtos veganos pode salvar animais. Primeiro, porque diminui as barreiras: torna mais conveniente o não-consumo de carne e derivados, predispondo as pessoas a conhecer também os argumentos éticos e a considerarem o veganismo (vamos lembrar que quase ninguém nasceu vegano e que a transição nem sempre foi fácil).

Segundo, porque a oferta de produtos veganos efetivamente gera a substituição de uma parte do consumo de produtos de origem animal, mesmo entre aquelas pessoas que não se tornaram (e inclusive as que nem sonham em se tornar) veganas. No Canadá, por exemplo, o consumo de leite de vaca diminuiu 25% nos últimos vinte anos – ao mesmo tempo em que a oferta de leites vegetais estava decolando. O ponto é: ninguém vai passar a consumir duas vezes mais calorias, nem tomar 8 copos de leite em um dia. Se você passa a consumir leite vegetal, você reduzirá o seu consumo de leite animal. Se você come um hambúrguer vegano, você deixará de comer um hambúrguer de carne. É simples assim.

Isso se estende ao varejo (supermercados e afins), ao mercado de alimentação fora do lar (restaurantes, lanchonetes e afins) e a outros segmentos – e é bom que seja assim. Os shopping centers, por exemplo, às vezes acusados de ser elitistas, recebem no Brasil quase 500 milhões de visitas por mês, sendo cerca de 70 milhões de frequentadores diferentes. Se um terço da população brasileira freqüenta os shoppings, me parece bastante pertinente lutar para difundir a comida vegana ali também – e nas ruas, e nas casas, e nos governos, e no campo. Novamente: se o motor da matança é o consumo de carnes e derivados, todos fazem parte.



Se um terço da população brasileira freqüenta os shoppings, parece bastante pertinente lutar para difundir a comida vegana ali também – e nas ruas, e nas casas, e nos governos, e no campo.

Isso significa que você precisa comprar o novo hambúrguer vegano de uma conhecida marca de carnes? Não! Ou que você precisa comer o “McVegan”, no dia em que o McDonald’s lançar esse hambúrguer porque percebeu que pode lucrar com isso? Definitivamente, não! Que dirá fazer ativismo nesse sentido – não, isso você realmente não precisa fazer. E você pode continuar a ser contra posturas da empresa, e até ficar fula da vida porque usaram a palavra “vegan” nesse contexto. Mas eis o fato concreto: alguém vai deixar de comer animais por causa daquela disponibilidade, daquele acesso, naquele momento. Você vai ser contra isso?

É evidente que, enquanto alguns países estão desacelerando o seu consumo de produtos de origem animal – em parte devido ao ativismo vegano de mercado -, em outros países (como a China) o consumo de carnes, laticínios e ovos ainda segue em pleno crescimento. Enquanto for possível encontrar mercados abertos a esse maior consumo, é de se esperar que a produção de outros países seja exportada para lá. Isso aconteceria mesmo que fossem usadas somente outras estratégias (que não a de mercado) nestes países “redutores”. Na verdade, isso apenas reforça que precisamos trabalhar cada vez mais como um movimento global.

 

Parte 5: Está funcionando?

O grande sonho de todo ativista vegano é ver a curva virar. Ansiamos pelo dia em que veremos uma estatística confiável de que o número de animais criados e abatidos globalmente para consumo começou, finalmente, a diminuir.

Esse dia ainda não chegou. Embora, em alguns países, o ponto de inflexão já tenha acontecido (Reino Unido, Canadá, Estados Unidos, entre outros), os números globais continuam crescendo. Isso ocorre por vários motivos: (A) nunca houve tantas pessoas no planeta; (B) a renda média per capita vem aumentando – o que, em muitos países, ainda corresponde a um aumento do consumo de animais; (C) a carne de frango ganhou muito do market share que era da carne bovina (animais bem menores, portanto muito mais mortes por tonelada de carne); e (D) alguns dos países mais populosos do mundo (notadamente a China) viram, nos últimos anos, um aumento vertiginoso no consumo de carne per capita, que sempre foi relativamente baixo.

 




Nos Estados Unidos, por exemplo, o consumo de carne começou a diminuir e isso teve um reflexo no número de animais abatidos anualmente. Em compensação, os números ainda crescem a um ritmo acelerado em países populosos como a China, onde a renda tem aumentado. (Fonte: FAOSTAT, 2017)

Com todas essas variáveis pesadas jogando contra os animais, o progresso conseguido em alguns países não é suficiente para chegar nem perto de virar o jogo. Mas o fato é que ainda é difícil saber o que está ou não funcionando de um ponto de vista global, exceto se por mero achismo. Nossa sede de justiça não pode cegar nosso senso crítico. Temos indícios (como nos Estados Unidos, no Canadá e até no Brasil) de que estamos começando a caminhar, embora ainda de modo bastante heterogêneo, para esse sonhado ponto de inflexão. E eu nunca pensei que diria isso, mas lá vai: escutem os pecuaristas. Se eles estão preocupados, deve ser um excelente sinal.

Dizer que as abordagens de ativismo vegano atuais “não estão funcionando” baseando-se no fato de que não chegamos ainda nesse ponto de inflexão global é, no mínimo, um equívoco lógico. De uma estratégia eficaz esperamos, primeiro, que ela seja capaz de desacelerar o crescimento da exploração animal, e não causar um declínio imediato. Mesmo que nós soubéssemos com toda a certeza qual é exatamente a estratégia mais eficaz, e tivéssemos a melhor execução possível, uma “virada” dessa magnitude não ocorreria senão num espaço de décadas.

 

Parte 6: Tem outra abordagem? Some, em vez de dividir

O movimento vegano comporta abordagens diversas:

  • Se há ativistas fazendo lobbying em prol de legislação em defesa dos animais e você não acredita nesse tipo de trabalho, faça de outro modo;
  • Se há uma ONG fazendo ativismo de mercado e você não concorda porque acha que grandes empresas lançarem produtos e cardápios veganos não é uma boa forma de avançar o veganismo e os direitos animais, procure uma ONG ou projeto que foque em outras estratégias;
  • Se tem alguém fazendo ativismo de rua, mostrando vídeos de matadouros e conversando com transeuntes, e você se sente desconfortável ou acha que isso é ineficaz, busque outra forma de ativismo que se encaixe melhor com você;
  • Se você identifica uma lacuna de sinergias com as militâncias de outros movimentos sociais cujas estratégias estão alinhadas com a sua visão de mundo, preencha essa lacuna organizando ações em parceria com esses projetos e fortalecendo essas intersecções.

As divergências são naturais e podem ser aproveitadas para enriquecer o movimento e possibilitar que muitas abordagens diferentes sejam testadas e utilizadas.

Mas essa mesma oportunidade de enriquecimento pode virar uma circunstância de divisão e intolerância intramovimento quando o pensamento divergente não aceita coexistir com as abordagens existentes, apontando-lhe o dedo em vez de construir projetos complementares.



Se você não se identifica com uma determinada estratégia de ativismo vegano, faça um ativismo diferente.

No caso da intolerância ao ativismo de mercado, dissidentes podem chegar a desmerecer um trabalho de peso que ativistas e organizações fazem direcionado a empresas, criticando até mesmo iniciativas bem-sucedidas de inclusão de produtos veganos no portfólio de marcas com grande penetração na sociedade. Mas há quem realmente acredite que trabalhar com uma grande rede de lanchonetes para ter várias opções veganas no cardápio é algo que não ajuda os animais?

 

Parte 7: Considerações finais

Enquanto organizações e ativistas profundamente comprometidas com a causa dos direitos dos animais empreendem esforços consideráveis em aumentar o acesso a produtos e serviços veganos utilizando estratégias que passam por pequenas e grandes empresas, trabalhando por dentro do sistema socioeconômico vigente, o discurso fácil e sexy do “veganismo contra o sistema” ganha simpatizantes aqui e ali, depreciando o ativismo alheio ao mesmo tempo em que vende um pacote pronto de crenças que favorece um determinado estereótipo.

O grande equívoco, entretanto, está mais em pensar que as abordagens são mutuamente excludentes do que em tentar refutar os impactos positivos do ativismo de mercado. Não é preciso “apontar o dedo” para a outra abordagem para ganhar reconhecimento da sua. Cada abordagem surte efeitos diferentes em diferentes parcelas do público.

Em tempos de discursos inflamados de inclusão e diversidade, um pouco mais de tolerância e humildade intelectual cairia bem.

Os animais agradecem.

Sobre Guilherme Carvalho

Secretário-executivo da Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB). Coordenador Nacional da ONG norteamericana The Pollination Project no Brasil. Sócio-proprietário do restaurante vegano Pop Vegan Food. Co-fundou a rede de restaurantes Barão Natural, da qual permaneceu como sócio entre 2014 e 2017. Foi Gerente de Campanhas no Brasil da ONG norteamericana Humane Society International (HSI) entre 2009 e 2012. Pós-graduado em Gestão Empresarial pela FIA-SP. Realizou o documentário de curta metragem "Atave - A Avicultura Escancarada".
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