Luciano Carlos Cunha: A Revolução Ética da Senciência
Em 2025, o filósofo moral Luciano Carlos Cunha protagonizou um dos marcos editoriais mais notáveis da filosofia contemporânea brasileira. Ao longo dos doze meses do ano, ele lançou, em sequência mensal, os doze volumes de sua monumental coleção Uma Jornada pela Ética Animal: Do Básico ao Avançado, um projeto financiado pela organização Ética Animal, voltado a oferecer uma compreensão completa e acessível dos fundamentos da consideração moral pelos seres sencientes.
Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Cunha é coordenador geral da ONG Ética Animal no Brasil, leciona cursos de extensão sobre ética e defesa animal em universidades federais e apresenta o Ethicast, podcast oficial da organização. Além de filósofo, é também músico e compositor, tendo lançado seis álbuns em 2025: Sinfonia Estranha, Sinfonia Espacial, Sinfonias Cinemáticas, Concertos, Vol. 1, Concertos, Vol. 2 e Concertos, Vol. 3. Essas obras, que transitam entre o erudito e o experimental, exploram atmosferas sinfônicas e temas contemplativos que dialogam com sua visão filosófica sobre harmonia, consciência e ética.
Sua pesquisa se destaca por abordar, com precisão conceitual e coragem moral, temas que poucos filósofos se atrevem a tocar: o sofrimento dos animais selvagens, os dilemas entre ambientalismo e ética animal, a necessidade de um ativismo eficiente e os riscos de sofrimento no futuro. Em Uma Jornada pela Ética Animal, ele oferece ao público uma síntese profunda e sistemática desses debates, apresentando-os em linguagem clara e acessível, sem abrir mão do rigor acadêmico.
Nesta entrevista, concedida após a conclusão dos doze volumes, Luciano reflete sobre sua trajetória, comenta as principais ideias da coleção e analisa o futuro da ética animal no Brasil e no mundo.
Guia Vegano: Luciano, você é conhecido por unir rigor filosófico e clareza na comunicação. Como surgiu a ideia da coleção Uma Jornada pela Ética Animal e o que te inspirou a organizá-la como um caminho que leva o leitor do básico ao avançado?
Dr. Luciano: Desde 2005 sou ativista pelos animais. Nesses 20 anos, percebi que muitas questões eram recorrentes nos debates e que os argumentos de ambos os lados eram quase sempre os mesmos. Entretanto, percebi também que, na vasta maioria das vezes, essas questões não eram discutidas com a profundidade e o rigor necessários.
Assim, pensei que, enquanto especialista em ética animal, poderia contribuir escrevendo uma coleção de livros que oferecesse um tratamento sistemático de cada uma dessas questões (e também de outras muito menos discutidas, mesmo no meio do ativismo). A ideia da coleção é fazer com que as pessoas tenham acesso – de maneira didática, porém aprofundada – ao que já foi discutido pelos especialistas sobre cada uma dessas questões, para poderem continuar o debate a partir daí, em vez de terem que começar do zero. A ideia é encurtar o caminho.
Para escrever esses volumes, contei com o apoio da Ética Animal – organização cujo objetivo é justamente promover o conhecimento sobre essas questões. Todos os volumes podem ser acessados e baixados gratuitamente. O objetivo é que todos possam ter acesso a essa discussão.
Guia Vegano: No primeiro volume, você analisa as tentativas de justificar o especismo. Por que essa forma de discriminação ainda persiste, mesmo entre pessoas que se consideram éticas e bem informadas?
Dr. Luciano: Por vários motivos. Um deles é que as pessoas, por pertencerem à espécie humana, são privilegiadas pelo especismo. Isto é, há uma motivação auto-interessada nas tentativas de justificar o especismo. Quem defende o especismo só o faz porque sabe que não será vítima dele (o que mostra que o especismo não é justo, pois é tendencioso).
Outra razão pela qual o especismo prevalece, mesmo entre pessoas que se consideram éticas e bem informadas, é o próprio fato de elas se considerarem éticas e bem informadas. Há um viés chamado efeito de credencial moral: quando alguém se considera uma pessoa boa, inteligente ou bem informada, isso a inclina a não corrigir os erros que ainda comete. Esse viés é agravado quando alguém realmente já faz algo de bom. Isso explica por que ativistas de causas humanas muitas vezes não estão abertos a pensar a questão animal. Também explica por que várias pessoas que já são veganas negligenciam os danos que os animais padecem em decorrência de processos naturais, e assim por diante.
Há várias outras razões pelas quais o especismo prevalece, mas eu destacaria essas duas: auto-interesse e efeito de credencial moral.
Guia Vegano: Em Considerando os Seres Sencientes, você defende que a senciência deve ser o critério central da moralidade. O que te convenceu de que esse é o fundamento mais justo e quais são os maiores desafios para que esse entendimento seja amplamente aceito?
Dr. Luciano: Da maneira como entendo o termo, senciência é um sinônimo de consciência em seu sentido mais amplo: é o que faz haver ali, naquele corpo, alguém habitando-o, em vez de um corpo vivo, mas “vazio”. O que me convenceu de que a senciência é o critério adequado para a consideração moral são três ideias: (1) a moralidade é sobre evitar prejudicar e buscar beneficiar; (2) para haver prejuízo e benefício, precisa haver alguém para quem as coisas poderiam ir melhor ou pior; (3) a senciência é o que faz haver ali alguém para quem as coisas poderiam ir melhor ou pior.
Acredito que os maiores desafios para que o critério da senciência seja aceito são dois. O primeiro é um mal-entendido do que o critério propõe. Muitas pessoas acreditam que é um critério que diz que a única forma de prejuízo é o sofrimento (isto é, que não considera o dano da morte), que exclui os invertebrados ou que você precisa aceitar de antemão uma teoria ética específica (como o utilitarismo) para aceitá-lo. Tudo isso é equivocado.
O segundo é, novamente, o auto-interesse. Muitas pessoas que rejeitam o critério da senciência o fazem não porque realmente veem nele algum problema filosófico, e sim simplesmente porque querem ter uma justificativa para continuar consumindo os produtos da exploração animal.
Guia Vegano: O volume Os Animais e o Dano da Morte levanta uma questão delicada: até que ponto a morte de um animal não humano é uma perda moral comparável à de um ser humano? Como você responde a quem acredita que os animais não têm consciência da morte e, por isso, não seriam prejudicados por ela?
Dr. Luciano: Respondo que o dano da morte não depende de alguém ter ou não consciência do que é a morte. A morte é um dano quando ela for pior do que continuar a viver. Isso não depende em grau algum de o ser em questão entender o que é a morte. Todo mundo já percebe isso no caso das crianças pequenas. Seria absurdo dizer: “tudo bem matar uma criança pequena, pois ela nem entende o que é a morte”. Mas o mesmo vale em relação aos animais não humanos.
Se a morte é um dano porque impede o indivíduo de desfrutar das coisas positivas que experimentaria se continuasse vivo, então, quanto mais alguém teria pela frente para desfrutar, e quanto menos desfrutou até o momento, mais prejudicado é com a morte. Isso implica que não podemos deduzir, do fato de que alguém é humano, que é necessariamente mais prejudicado com a morte do que quem pertence a outra espécie. Também não podemos deduzir que seres mais inteligentes são mais prejudicados com a morte do que seres cognitivamente menos capazes, e assim por diante. A magnitude do dano da morte varia muito de indivíduo para indivíduo, e essa variação se dá tanto se compararmos indivíduos de espécies diferentes quanto indivíduos de uma mesma espécie, incluindo humanos.
Entretanto, suponhamos que todo e qualquer humano fosse mais prejudicado com a morte do que todo e qualquer animal não humano. Isso ainda seria insuficiente para justificar matar animais não humanos. Por exemplo, a maioria das pessoas reconhece que, entre humanos, quem viveu pouco é mais prejudicado com a morte do que quem já viveu muito. Mas ninguém diz que, por causa disso, está justificado assassinar idosos, nem mesmo se isso for necessário para salvar crianças. As pessoas só pensam diferente no caso dos animais não humanos por conta do especismo.
Guia Vegano: No livro O Debate sobre a Exploração Animal, você examina argumentos que tentam justificar práticas de exploração com base em tradição, cultura ou necessidade. Qual desses argumentos ainda te parece mais difícil de desconstruir e por quê?
Dr. Luciano: Acredito que um dos poucos argumentos a favor da exploração animal que realmente apontam para algo importante é aquele que alega que acabar com a exploração animal resultaria em mais mortes e sofrimento de animais do que se ela continuasse. Segundo esse argumento, isso aconteceria por conta das mortes indiretas de animais na agricultura e porque a diminuição da exploração animal poderia aumentar as taxas reprodutivas de animais de pequeno porte que vivem na natureza, que se reproduzem na casa dos milhares ou milhões e normalmente só sobrevivem dois de cada ninhada. Acredito que o argumento falha porque esses resultados não se seguem necessariamente da abolição da exploração animal (ainda que poderiam ocorrer, se não forem prevenidos). Por isso, acredito que o argumento, em vez de justificar a exploração animal, sem querer aponta para a necessidade de também pensarmos em formas de diminuir a quantidade de dano que os animais sofrem indiretamente na agricultura e também os danos em decorrência de processos naturais (como aqueles decorrentes da quantidade de reproduções, por exemplo). Por isso, acho o argumento interessante: ele tenta justificar a exploração animal, mas acaba mostrando que, além de abolir a exploração animal, temos de nos preocupar com outras formas de dano para os animais que não decorrem da exploração.
Por outro lado, há argumentos que são fraquíssimos, mas é difícil convencer as pessoas disso. Um exemplo é o apelo ao natural: “comer carne é certo porque é natural”; “comer carne é errado porque não é natural”. Normalmente as pessoas não param para questionar: “o que é natural é relevante para saber o que é certo ou errado?”. Afirmar “x é natural” é somente dizer que é algo que pode ser feito instintivamente (não requer reflexão racional) ou que cumpre uma função biológica. Isso não implica que o comportamento em questão seja justo, que tenha boas consequências ou que sequer seja aceitável. O que deveria estar em jogo não é saber se uma prática é ou não natural, e sim saber se causa mais prejuízos ou mais benefícios, e se seria aprovada caso não soubéssemos se seríamos beneficiados ou prejudicados por ela.
Guia Vegano: O quinto volume trata das diferenças entre ética animal e ambientalismo, mostrando que essas duas perspectivas, embora próximas em aparência, muitas vezes entram em conflito. Quais dilemas éticos mais te preocupam quando o bem-estar dos indivíduos colide com a preservação de ecossistemas?
Dr. Luciano: O que mais me preocupa é que as pessoas, em geral, aprovam práticas ambientalistas extremamente prejudiciais aos animais, pensando que elas têm como objetivo diminuir a quantidade de sofrimento e mortes dos animais.
Por exemplo, ao redor do mundo, há muitos programas ambientalistas de matança de animais de espécies classificadas como invasoras (isso não significa que os animais estejam invadindo o local: é a espécie à qual eles pertencem que não teve origem naquele local – eles mesmos já nasceram ali, na maioria dos casos). Em algumas vezes, esses animais são mortos porque comem flores nativas raras. O ambientalismo vê o fato de eles comerem essas flores como um mal não porque algum outro animal precisaria da flor enquanto alimento (normalmente, são os próprios animais mortos que precisam da flor enquanto alimento), e sim por valorizar em si a flor nativa (e por acreditar que ela vale mais do que a vida do animal).
Em outras vezes, esses animais são mortos porque se entrecruzam com animais das espécies nativas e produzem híbridos. O ambientalismo vê isso como uma forma de extinguir a espécie nativa, de eliminar a sua “pureza”. Esse é o verdadeiro motivo pelo qual esses animais são mortos. Esses programas não têm como objetivo diminuir sofrimento e mortes. É claro, para fazer com que o público aceite a matança, a retórica ambientalista vai destacar os danos que, por vezes, os animais que serão mortos causam aos animais das espécies nativas. Mas observe que os animais das espécies nativas também causam dano aos animais de espécies invasoras e aos híbridos, mas os ambientalistas não veem isso como um problema. Isso mostra que a meta desses programas não é diminuir a quantidade de sofrimento e de mortes dos animais (se fosse, se preocupariam igualmente com qualquer ser senciente, independentemente de a espécie à qual ele pertence ter se originado ou não no local onde atualmente o animal se encontra).
Outra evidência escancarada do conflito entre essas visões é o fato de muitas organizações ambientalistas proeminentes defenderem que, desde que seja feito de maneira sustentável, não há nada de errado com o consumo de animais, com a caça ou com a experimentação animal. O ponto é: essas organizações, ao fazerem isso, não estão indo contra o ambientalismo, pois o próprio ambientalismo não dá consideração moral aos animais enquanto seres sencientes.
Na ética centrada na senciência, os animais possuem valor em si, e o meio ambiente possui valor enquanto recurso para eles. No ambientalismo, dá-se exatamente o contrário: espécies e ecossistemas são vistos como possuindo valor em si, e os animais são vistos como meros meios. É por isso que o ambientalismo defende que, desde que não se ameace uma espécie ou ecossistema, pode-se matar tantos animais quanto quiser.
Guia Vegano: Em A Quem Devemos Consideração Moral, você retorna ao debate sobre o critério da senciência e enfrenta críticas de que ele ainda seria antropocêntrico. Como você enxerga o futuro dessa discussão, especialmente diante da possibilidade de novas formas de senciência, como a artificial?
Dr. Luciano: A própria possibilidade do surgimento de seres sencientes não orgânicos no futuro já mostra que o critério da senciência não é antropocêntrico, pois, se tais seres vierem a existir, o critério diria que devem receber tanta consideração quanto qualquer outro ser senciente.
Podemos constatar isso mesmo em relação aos animais não humanos. O critério da senciência diz para considerá-los porque eles são passíveis de ser prejudicados e beneficiados, e não porque se parecem com humanos (na verdade, o critério diz que os humanos devem ser considerados porque são sencientes). Isso tudo mostra que o critério não é antropocêntrico.
Acredito que o futuro da discussão sobre o critério da senciência terá de ser centrado principalmente em três questões: (1) Quais outras implicações da consideração pelos seres sencientes ainda não percebemos? (2) Como saber quais seres são sencientes? (3) Como fazer com que a história do mundo seja melhor para os seres sencientes daqui para frente?
A possibilidade de senciência não orgânica ilustra bem essas três questões. Em primeiro lugar, não sabemos se, de fato, a senciência apareceria em sistemas não orgânicos. Aparecerá se estiver correto o funcionalismo (a tese de que, para a consciência aparecer em um sistema, isso não depende do material que compõe o sistema, e sim da maneira como ele está configurado). Atualmente, não sabemos se o funcionalismo está correto, mas é uma possibilidade que boa parte dos especialistas admite. Além disso, atualmente, não sabemos como a matéria precisa estar organizada para haver condições suficientes para a consciência aparecer. Entretanto, há algum progresso no entendimento dessas questões.
Em segundo lugar, caso esses seres venham a existir, provavelmente serão muito diferentes dos seres sencientes orgânicos. Por exemplo, poderão não gritar nem se contorcer quando sentirem dor. Poderão não ter rostos. Então, podem não despertar empatia. Os animais já são muito parecidos com os humanos nessas características, mas, ainda assim, a maioria das pessoas os desconsidera. Além disso, pode ocorrer que, em certo estágio do desenvolvimento, no futuro, alguma dessas entidades já seja senciente e nós não percebamos. E pode ser que, no futuro, se torne barato criar quantidades gigantescas desses tipos de seres (por exemplo, para fazer simulações de universos em meios digitais). Há, inclusive, um argumento que defende que nós vivemos em uma simulação desse tipo. Assim, os riscos são muito grandes. É por isso que é necessário discutir nossos deveres para com os seres sencientes em geral, sem limitar isso ao reino animal.
Guia Vegano: No volume sobre os animais selvagens, você aborda o sofrimento causado por processos naturais — um tema que poucos filósofos se atrevem a tratar. O que te levou a se tornar uma das vozes pioneiras nessa discussão e como lida com as críticas de que intervir na natureza seria uma atitude arrogante?
Dr. Luciano: O que me levou a querer destacar essa questão foram principalmente quatro razões.
A primeira é a quantidade de vítimas. A vasta maioria dos animais na natureza são animais de pequeno porte que se reproduzem tendo milhares ou milhões de filhotes por posta de ovos, e, em populações estáveis, sobrevivem em média apenas dois filhotes. O número de mortes decorrente dessa situação é tão gigantesco que torna pequenos até mesmo os números da exploração animal. Para se ter uma ideia, se fôssemos fazer uma analogia com o período de um ano, os animais explorados representariam, no máximo, 14 segundos do ano. Os outros 364 dias, 23 horas, 59 minutos e 46 segundos do ano seriam os animais na natureza.
A segunda razão é o quão desafortunada cada uma dessas vítimas foi com a vida que teve. A vasta maioria desses animais morre dias ou horas após nascer ou eclodir dos ovos. Além da morte prematura, suas vidas são quase que 100% sofrimento (e, mesmo nos casos nos quais conseguem ter algumas experiências positivas, há uma preponderância de sofrimento).
A terceira razão é que muito pouca gente está se preocupando com isso. Mesmo ativistas da causa animal quase não ligam para esse problema, dada a prevalência da visão de que “se não fomos nós que causamos, não precisamos nos preocupar”. Se realmente nos importamos com os animais, vamos querer melhorar sua situação, independentemente de o dano ter sido causado por humanos ou por processos naturais. Na verdade, vamos querer prevenir o dano maior – seja lá se for antropogênico ou natural.
A quarta razão é que há muita coisa que poderia ser feita para diminuir esses danos e que não é feita porque pouca gente vê isso como um problema relevante. Por exemplo, poderia ser estudado quais elementos no ambiente tendem a diminuir a produtividade primária – isto é, os vegetais que são consumidos pelos insetos e estão na base da cadeia alimentar. Diminuir a produtividade primária indiretamente diminuiria as taxas de nascimento em geral e, portanto, traria uma redução global do sofrimento e das mortes prematuras. Esse tipo de estratégia escaparia daquela objeção “mas, e se a diminuição das taxas de nascimento aqui implicar um aumento das taxas de nascimento ali?”. Entretanto, para que haja a vontade e a estrutura para fazer algo, é necessário antes mostrar que essa questão é um problema importante.
Agora, quanto à crítica de que intervir na natureza seria uma atitude arrogante, é interessante observar que as pessoas só fazem essa acusação diante da proposta de intervir na natureza para diminuir o sofrimento dos animais. Em qualquer outro contexto, elas costumam não ver nada de errado em intervir na natureza. Elas usam carros, celulares, computadores, vão a médicos, vivem em casas, usam hospitais, bibliotecas, escolas e assim por diante. Além disso, intervenções na natureza para preservar espécies raras ou para alcançar qualquer outra meta ambientalista são muito bem aceitas. Isso mostra que, na verdade, essas pessoas não são contrárias a intervir na natureza: elas são favoráveis, desde que a meta não seja uma preocupação com o bem dos animais. Em resumo, é apenas especismo, mas disfarçado de postura “anti-intervenção”.
Guia Vegano: Em Um Ativismo Eficiente e A Ética e o Futuro, você conecta teoria e prática, propondo que o ativismo deve ser guiado por critérios éticos e estratégicos. Como equilibrar a urgência das ações presentes com a responsabilidade de prevenir sofrimentos que ainda estão por vir?
Dr. Luciano: Na minha visão, nossa meta deveria ser tentar fazer com que a história do mundo daqui para frente fosse a melhor possível (ou, pelo menos, a menos ruim possível). Se tivermos essa meta, não importa quando um evento ocorre, e sim o quão bom ou ruim será, independentemente de quando ocorrer.
Por exemplo, suponhamos que só pudéssemos escolher uma das duas coisas a seguir: (1) agir agora e evitar o sofrimento de um milhão de animais; (2) ou esperar alguns anos e evitar o sofrimento equivalente de um trilhão de animais. Parece que, claramente, a segunda opção é melhor.
Entretanto, muitas pessoas defenderão que, em um caso assim, é melhor evitar o sofrimento do menor número de animais do presente, mesmo que isso implique o sofrimento de muito mais animais que existirão no futuro. Acredito que isso ocorra por várias razões. Uma é que as pessoas têm dificuldade de sentir empatia por seres que ainda não existem. Entretanto, o fato de eu não sentir empatia por um ser não fará com que ele sofra menos. Ainda bem que existem os princípios éticos, que podem compensar nossa falta de empatia. Outra explicação é que elas sentem necessidade de algum ganho imediato. Entretanto, a meu ver, o que importa é o tamanho do benefício que podemos causar, e não quando ele ocorrerá. Isto é, se temos duas estratégias, devemos adotar aquela que tem o potencial de ter efeitos mais positivos ao longo do tempo, independentemente de qual delas vai ter efeitos positivos mais rapidamente e de qual vai demorar mais para tê-los.
Tendo dito isso, é importante notar que não necessariamente haverá sempre esse dilema entre sacrificar o presente ou o futuro, pois muitas das melhores estratégias para melhorar o futuro também melhoram o presente, e vice-versa. Um exemplo é aumentar a consideração por todos os seres sencientes. É algo que tende a influenciar positivamente toda a história daqui para frente, seja em curto ou longo prazo, e independentemente de como será o futuro.
Guia Vegano: No décimo volume, Vieses e Sua Influência, você mostra como nossos preconceitos cognitivos afetam as decisões que envolvem os animais. Quais desses vieses você considera mais perigosos para o avanço da ética animal e de que forma a educação pode nos ajudar a superá-los?
Dr. Luciano: Acredito que todos os vieses abordados na obra têm efeitos muito negativos. Mas, se tiver que destacar, eu diria que é o raciocínio motivado, o viés de confirmação. O raciocínio motivado ocorre quando ajeitamos os fatos e os argumentos para caberem naquilo que já pensávamos antes. Na verdade, deveríamos fazer o contrário: ajustar nossas crenças e atitudes diante das evidências e argumentos. O raciocínio motivado produz um viés de confirmação: reparamos nos (ou damos um peso maior aos) fatos e argumentos que confirmam nossa crença ou atitude prévia, e não reparamos nos (ou damos menor importância aos) fatos e argumentos que contrariam nossa posição inicial.
Por exemplo, uma atitude bastante comum em todos nós é, em vez de tentarmos listar todos os prováveis efeitos positivos e negativos de cada estratégia de ativismo antes de escolhermos uma estratégia, selecionar um único efeito positivo daquela estratégia de que já simpatizamos de antemão e selecionar um único efeito negativo daquela estratégia de que antipatizamos de antemão, e pensar que isso já justifica adotar a primeira e rejeitar a segunda. Dessa maneira, estamos nos enganando: ficamos com a consciência limpa, mas não fizemos um balanço sério dos efeitos das estratégias disponíveis. Deveríamos tentar corrigir essa atitude. Do contrário, não vamos conseguir realmente mudar a situação dos animais para melhor (talvez até consigamos piorá-la sem querer).
Em relação a alguns vieses, há pesquisas que mostram que o próprio fato de perceber que eles existem já ajuda a superá-los. Em relação a outros vieses, no entanto, não é assim: continuamos a exibi-los mesmo que já saibamos de sua existência. Isso não significa, contudo, que não é possível diminuir sua influência ou mesmo superá-los. Como qualquer outra atividade, é algo que requer prática e esforço constante para se conseguir um bom domínio. Mas, obviamente, só vamos querer fazer um esforço nesse sentido se pensarmos que é importante superar esses vieses. Então, acredito que mostrar que esses vieses frequentemente tornam pouco eficientes ou mesmo contraproducentes as tentativas de mudar a realidade dos animais é um bom primeiro passo para criarmos essa motivação.
Guia Vegano: No penúltimo volume, você analisa como diferentes correntes éticas, como o utilitarismo, o prioritarismo, a deontologia e a ética das virtudes, tratam a questão animal. Depois de comparar essas abordagens, qual delas te parece mais eficaz para orientar decisões morais e políticas públicas que realmente ampliem a consideração pelos animais?
Dr. Luciano: Acredito que, por um lado, cada uma das teorias da ética contemporânea aponta para uma parte da verdade, no sentido de que todas elas trazem questões importantes para pensarmos e fatores que, direta ou indiretamente, são relevantes para a moralidade de nossas decisões. Entretanto, por outro lado, todas essas teorias também têm muitos problemas e limitações. Em minha visão, nenhuma delas é completamente satisfatória.
Diante disso, uma opção seria adotar uma abordagem pluralista, que combine os critérios de várias teorias éticas. Por exemplo, no meu caso, acredito que critérios muito importantes são: (1) quanto maior o número de indivíduos em uma situação ruim, pior ela é; (2) devemos buscar maximizar a quantidade total de benefícios e minimizar a quantidade total de prejuízos; (3) um ponto de melhora no bem-estar de alguém possui mais valor quanto pior for a situação desse alguém; e (4) devemos diminuir a desigualdade de bem-estar entre os indivíduos. É claro, por vezes, os critérios que adotamos poderão conflitar, e então precisaremos investigar como balancear isso. Essa é a parte mais difícil. Tanto é que tive de dividi-la em dois capítulos do livro, o primeiro e o último.
Os critérios que dei como exemplo acima são mais característicos das teorias consequencialistas, mas o interessante é que daria para fundamentá-los também de maneira não consequencialista. Por exemplo, o véu da ignorância é um procedimento típico do contratualismo. Mas poderia ser dito que, se estivéssemos por trás de um véu da ignorância, onde não saberíamos nossas características enquanto indivíduos (nossa espécie, raça, gênero etc.), talvez esses fossem os critérios que seres racionais considerariam os mais justos. Ou poderia ser dito que esses seriam os critérios adotados por agentes com um bom caráter moral, e assim por diante (nesse caso, os critérios consequencialistas seriam justificados por uma abordagem centrada no caráter).
Por isso, no livro procurei enfatizar que, apesar de suas diferenças, há metas que toda e qualquer teoria ética deveria ter em comum. Defendi que uma delas é aceitar a igual consideração de todos os seres sencientes (o que implica não atribuir graus diferenciados de estatura moral com base em espécie, raça, gênero, níveis de inteligência etc.). Além disso, defendi no livro que há tanto argumentos gerais (que não dependem da aceitação prévia de uma teoria específica) quanto argumentos específicos de cada teoria ética para se defender a abolição da exploração animal e a redução dos danos que os animais padecem em decorrência dos processos naturais. Acredito que é mais importante enfatizar esse grau mínimo de convergência entre as diversas teorias do que, por exemplo, defender uma teoria ética específica ou uma corrente específica de teorias éticas.
Isso já foi refletido, por exemplo, na Declaração de Montreal sobre a Exploração Animal, de 2022. Nela, mais de 500 especialistas em ética de mais de 42 países e defensores das mais variadas teorias éticas declararam que quase nunca concordam em alguma coisa, mas que, entretanto, concordam que a exploração animal é injusta e deveria ser abolida. Esse é um bom exemplo da grande mudança que pode ocorrer quando focamos no grau de convergência, mesmo que este seja pequeno.
Dr. Luciano: Acredito que o mais importante seja estarmos prontos para mudar nossas crenças e atitudes se descobrirmos que elas não possuem bons argumentos a seu favor. Por vezes, as pessoas dizem: “quero ler sobre esse tema para buscar argumentos para fortalecer o que eu já penso”. O objetivo deveria ser exatamente o contrário: testar se o que pensamos previamente realmente se sustenta. Se não fosse pela possibilidade de mudarmos o que pensamos, nem teria sentido passar tempo lendo e pensando sobre essas questões. Então, acredito que o mais importante seja ter essa honestidade intelectual desde o início.
Quando falo da aversão a pensar criticamente, eu não estou falando apenas daquela pessoa que acha um absurdo questionar o especismo e o consumo de animais. Estou falando também, por exemplo, das pessoas veganas que se recusam a pensar na questão do sofrimento dos animais selvagens que têm origem em processos naturais. Estou falando também dos ativistas que se recusam a examinar se as estratégias que empregaram até então realmente são eficientes. Na verdade, estou falando de qualquer um de nós quando nos apegamos às crenças que temos antes de examinar um assunto. Então, mais do que qualquer crença específica, o que mais atrapalha é a atitude de não estar disposto a examinar as próprias crenças (seja sobre fatos, seja sobre valores).
Acredito que o aprendizado mais importante é não ter medo de pensar em questões controversas, nem de discuti-las abertamente, e nem ter medo de mudar de posição se percebermos que estávamos equivocados. É somente assim que o progresso (na área de ética ou em qualquer outra) acontece. É por isso que eu gostaria de, no próximo ano ou no outro, atualizar essa coleção, revisando e ampliando a discussão. Quem sabe, novos volumes estejam por vir.
Muito obrigado!
Uma jornada que transcende os livros e convida a repensar o que significa agir moralmente neste planeta compartilhado
Com a serenidade de quem alia razão e compaixão em igual medida, Luciano Carlos Cunha emerge, ao final desta jornada, como uma das vozes mais lúcidas e consistentes da filosofia moral contemporânea. Seu projeto não é apenas uma coleção de livros: é um convite à revisão profunda de nossas crenças, hábitos e justificativas morais.
Ao lançar mensalmente cada volume de Uma Jornada pela Ética Animal ao longo de 2025, o filósofo não apenas tornou acessível um conteúdo de alto nível, mas também sinalizou que a ética — entendida em seu sentido mais amplo — pode e deve ser um instrumento de transformação concreta do mundo.
Em tempos em que o debate público se mostra cada vez mais polarizado, a obra de Luciano lembra que pensar com honestidade é um ato de coragem, e que o verdadeiro progresso moral começa quando somos capazes de questionar até mesmo as certezas mais confortáveis.
Com o encerramento desta entrevista, fica evidente que sua “jornada pela ética animal” não termina com o último volume da coleção. Ela continua, viva, na mente e no coração de quem aceita o desafio de olhar o mundo com empatia, coerência e razão.
Links e recursos relacionados:
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- senciencia.org ( site do autor )
- www.animal-ethics.org/pt ( finaciador do projeto )
- Ethicast ( Podcast sobre Ética Animal )
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