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Conhecimento Vegano

AdeS lança uma nova linha de produtos veganos e isso é ótimo

A Coca não está sozinha: poucos meses atrás outra gigante do setor de bebidas, a AMBEV, lançou uma linha de leites vegetais através de sua marca Do Bem. Não muito antes disso, UNILEVER adquiriu a Mãe Terra, Danone comprou a Silk e várias outras grandes empresas também começaram a focar no setor de produtos com origem vegetal. Esse tipo de empreitada levanta um não-tão-novo debate no mundo vegano: será que devemos apoiar grandes empresas que se envolvem nesse setor?

Muitos veganos escolhem boicotar essas empresas e pregam com fervor que quem consome seus produtos não é vegano de verdade, pois está apoiando quem explora animais, patrocina rodeios, faz testes etc. Enquanto isso, uma maioria dos veganos acha praticável comprar aquilo que vende em mais lugares e tem preço mais acessível, mas talvez fique com a dúvida sobre se está fazendo a coisa certa.

Começamos com a teoria: há pouquíssimas referências na literatura vegana publicada apoiando

o boicote completo a empresas. Por exemplo: um dos autores sobre o movimento abolicionista animal escreveu sobre o tema neste texto, concordando com o consumo de produtos veganos feitos por empresas não veganas. Isso parece uma abordagem lógica, até mesmo para quem fala pouco sobre pragmatismo.

É preciso levar em consideração os seguintes pontos para entendermos por que o lançamento de produtos veganos por grandes empresas (ainda) não veganas é bom:

  • A exploração animal está em toda cadeia. Não adianta boicotar um produto da Coca porque ela patrocina rodeios e comprar seu substituto num supermercado, que lucra diretamente com todo tipo de exploração animal. Além dos supermercados, os produtos veganos são distribuídos pelas mesmas empresas que distribuem os produtos com origem animal e muitas vezes os vegetais são produzidos nas mesmas fazendas que criam o gado. Isso sem falar em restaurantes, que também lucram com a exploração animal. Então essa visão de que quem boicota a Coca ou a Unilever está eliminando o sofrimento animal de seu consumo não passa de um auto engano: até comprando uma abobrinha você pode dar dinheiro a um produtor pecuarista, dependendo da fazenda em que foi produzida. Então faz sentido não comprar produtos que sejam fruto diretamente da exploração animal, pois isso é uma escolha de não financiar essas práticas diretamente, mas é praticamente impossível considerar toda a cadeia de produção, pois nesse caso começamos a fazer escolhas aleatórias contra algumas empresas mais famosas.
  • O boicote vegano não é suficiente. Eu adoraria viver num mundo onde as empresas estivessem morrendo de medo da perda de consumo gerada pelo veganismo, mas infelizmente isso não é real. O movimento vegano surgiu em 1944 (74 anos atrás) e até agora nenhuma empresa se viu forçada para fora do mercado por esse movimento. O número de veganos ainda não disparou em nenhum lugar do mundo e, inclusive, o consumo de produtos com origem animal cresceu consistentemente ao longo desse período. Em 2019, a previsão do mercado de carnes é de bater recordes e as empresas continuam investindo em aumentar sua produção, inclusive no Brasil. Os países mais pressionados por demanda fraca se tornam exportadores, com gigantescas populações que estão aderindo só agora ao consumo de carne (como é o caso de muitos países no oriente).
  • Foco em resolver o problema! Quem consome produtos com origem animal é exatamente quem precisa ser transformado, certo? Isso vale para empresas também. Se as grandes empresas controlam a produção de alimentos no mundo, a resolução do problema passa por uma transformação nelas.

     

  • Boicotar produtos, transformar empresas. Nós veganos não vamos comer nada com origem animal, isso está claro. A dúvida é: qual o próximo passo? Escolher algumas empresas para boicotar totalmente não tem surtido efeito, mas a transformação de dentro para fora pode ter resultados melhores. Vejam o caso da Coca, Unilever, AMBEV etc.: elas estão enxergando um novo mercado consumidor, de pessoas que são ou não veganas, mas que querem consumir outros tipos de produto. Além disso, essas empresas buscam soluções para seus impactos ambientais, para a escassez de alimentos e para os problemas de saúde humana e o veganismo pode ser a resposta para isso também. Então podemos posicionar o veganismo como uma solução para as empresas se transformarem aumentando a base de clientes, melhorando seus impactos ambientais, diminuindo a escassez de alimentos e oferecendo produtos mais saudáveis – a ideia passa a fazer sentido eticamente, socialmente, ambientalmente e economicamente. A estratégia é,  portanto, manter o boicote a todos os alimentos com origem animal, porém consumir de qualquer empresa que produza alimentos com origem vegetal.

Já que é pra focar na solução, vamos falar de negócios. É muito importante ter as grandes empresas envolvidas no setor também porque elas são detentoras de recursos, da confiança de clientes e da distribuição. Criar uma categoria com o varejo é algo extremamente caro. Se um pequeno produtor vende para um grande supermercado, vai ficar esquecido num cantinho, porque ele não tem dinheiro suficiente para comprar um ponto legal da prateleira (sim, é dessa forma que o mercado funciona). Por outro lado, se Coca, AMBEV, Nestlé e Danone decidem vender leites vegetais, elas têm força suficiente para criar essa categoria nas prateleiras do supermercado. E o que é essa força?

  • Capacidade de criar o espaço físico em si (ou seja, de pagar/negociar para que o supermercado abra um espaço para colocar essa nova categoria de produtos)

     

  • Força de comunicação: fazer propaganda é super caro. Fazer propaganda de uma marca que ninguém conhece, mais difícil ainda. Mas se as empresas gigantes começam a falar sobre o mercado de produtos veganos, todo mundo fica sabendo. Elas tem milhões de seguidores, muitas pessoas que confiam cegamente nas suas marcas, espaço na TV e nas mídias impressas, recursos para fazer anúncios e pagar influenciadores etc. Para dar uma ideia: o vídeo mais popular que eu encontrei de um canal vegano no youtube tinha mais ou menos 1,1 milhão de visualizações, sendo a grande maioria não chega em 100 mil (canal esse, por sinal, patrocinado por um restaurante que vende produtos veganos, mas também vende opções tradicionais e lucra com todo tipo de exploração animal). No canal da Coca Cola, todos os 200 vídeos mais populares têm entre 1,3 milhões e 60 milhões de visualizações. Entendem a diferença? Um único vídeo no canal da Coca chega em mais pessoas do que todos os vídeos feitos em todos os canais veganos, somados.

     

  • Distribuição: uma das coisas que mais incomoda todo mundo é o preço dos produtos de origem vegetal e a dificuldade de encontrá-los. Para que esses produtos custem a mesma coisa do que seus concorrentes, precisam ter escalas similares, ou seja, precisam ocupar uma máquina dia e noite na linha de produção, encher caminhões para serem transportados, gerar grandes volumes de compra de matéria prima etc.. Quando a Coca começa a usar essa soja certifica com RTRS, ela cria uma gigantesca demanda por esse tipo de matéria prima e permite que os produtores consigam focar nisso (ao invés de fazer soja para o gado, por exemplo). Além disso, eles já tem uma rede de logística que atende estabelecimentos no país todo, então conseguem fazer produtos chegarem em todos os lugares –  e faz com que a opção vegana deixe de ser um privilégio de quem mora nas grandes cidades. Do produtor até o varejista, todo mundo é impactado.

     

  • Tecnologia: os produtos veganos só vão ganhar o grande público quando tiverem o sabor que esse público espera. As grandes empresas conhecem como ninguém os desejos dos consumidores, têm centros de tecnologia e verbas de pesquisa. Se elas investem em pesquisa para alternativas de carne, por exemplo, podem fazer em um ano o trabalho que dezenas de empresas pequenas levariam uma década.

Eu termino com uma passagem do discurso feito pelo diretor de inovação da Coca no lançamento dos novos produtos AdeS: ele disse que existe uma diferença entre apropriação e atendimento. A Coca, como empresa gigante que é, tem a responsabilidade de  atender o público com produtos que façam sentido para economia, meio ambiente, pessoas e animais. Nem por isso vai se apropriar do movimento e tentar se vender como a empresa que salvou o veganismo.

Isso é o que eu espero das grandes empresas: que enxerguem a possibilidade de transformação, de dentro para fora, por entender como são enormes os impactos que causam no mundo. Ao mesmo tempo, o público colabora se apoiar esse movimento: quando a gente focar nossas compras nos produtos certos, as empresas também vão focar cada vez mais nesses produtos. Eu não nego o poder que uma boa luta pode ter, mas tudo em sua hora e lugar. No fim, os problemas se resolvem quando todo mundo começa a trabalhar junto com foco na solução, ao invés de viver disputando para ver quem tem mais razão ou quem é a pessoa mais perfeita.

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Fonte: veganismoestrategico.com.br

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