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Fidelidade e traição entre cães e seres humanos - Página 6

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[continuação]

charge1Essas condições levaram a uma profunda transformação urbana, ecológica, sociocultural e políticoeconômica. Um dos fenômenos mais surpreendentes relacionado a essas mudanças foi o explosivo crescimento populacional. Se em 1860 a cidade abrigava 20 mil pessoas, apenas uma década depois, conforme aponta o geógrafo Aroldo de Azevedo, já existiam 31 mil habitantes.

Daí por diante o crescimento foi exponencial: em 1890 dobrou para 64.934; em 1900 atingiu 239.820; em 1920: 579.033; em 1940 passou de 1 milhão, chegando à cifra de 1.318.539 pessoas; e, em 1950, duplicou novamente para um total de 2.198.096 habitantes. Acompanhando esse crescimento da população, houve aumento significativo no número de cães na cidade. Contra a parcela de animais vivendo nas ruas, tratravou-se uma operação de guerra, principalmente por parte dos órgãos públicos municipais.

Cães, abandonados ou não, sempre foram vistos por aqui como um problema para a municipalidade. Em 19 de julho de 1578 foi tomada a primeira medida legal para tentar evitar que cães continuassem a atacar e matar bezerros de criadores instalados na cidade. Como ocorrera com a cidade, o trato com os cães mudou muito pouco desse período até a primeira metade do século 19. Mas, com a vereança de 1578, começou um dos mais complexos processos históricos que se desenvolveu em São Paulo. Uma história ainda praticamente desconhecida, com mais de cinco séculos de existência, marcada por beleza e sensibilidade, evidência de contradição e constâncias de perversidade.

O Fim das Bolas Envenenadas
O ano de 1899, por exemplo, foi um marco na história dos cães da cidade. Antônio da Silva Prado, assim que assumiu a prefeitura da cidade, em uma de suas primeiras medidas, procurou acabar com uma prática havia muito utilizada no controle da população canina. A Lei no 384, de 21 de março daquele ano, reconhecia “como dívida certa e líquida a quantia de trezentos mil réis, proveniente de fornecimento de bolas envenenadas, feito por Manoel José Gonçalves,”. Em seu primeiro relatório, como prefeito da cidade, ele esclarecia a medida: “Eram gerais e justíssimas as queixas contra o bárbaro sistema de matança de cães, por meio de bolas envenenadas, distribuídas nas ruas centrais e dos arrabaldes”. Pelo menos desde 1875 esse método era legalmente usado, pois no Código de Posturas desse ano existem referências diretas a ele. O uso das bolas foi tão frequente no cotidiano da cidade que não passou ileso à pena incisiva do cartunista Angelo Agostini, o mais conhecido da época.

Como sugere Agostini, esses “canicídios”, legais ou ilegais, atingiam além dos cães abandonados, animais de raça e crianças pobres, talvez filhos de escravos ou negros libertos que, muito provavelmente, também consumiam as bolas envenenadas. O crescimento desordenado da cidade, a partir da década de 1880, além de trazer uma série de outros problemas, comprometeu ainda mais o já tão precário sistema de infraestrutura e saneamento básico disponível.Mas as reclamações contra os descasos da Prefeitura eram constantes, mesmo antes dessa década.

Fonte: www2.uol.com.br/sciam/reportagens/fidelidade_e_traicao_entre_caes_e_seres_humanos.html

Nelson Aprobato Filho é doutor em história pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo com a tese O couro e o aço. Sob a mira do moderno: a “aventura” dos animais pelos “jardins” da Pauliceia, final do século XIX / início do XX, defendida em 2007. Autor do livro Kaleidosfone
– As novas camadas sonoras da cidade de São Paulo, fins do século XIX – início do XX publicado pela Edusp/ Fapesp em 2008, trabalho originalmente defendido como dissertação de mestrado. Atualmente é teaching assistant e program assistant do Department of Romance
Languages and Literatures da Harvard University, EUA.
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